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Wednesday, September 14, 2011

O ouvido é todo o corpo


Os músicos sofrem muitas injustiças nessa vida. No interior de São Paulo, por exemplo, um motel uma vez usou um trechinho da trilha de Miles Davis para o filme "Ascensor para o Cadafalso” (Ascenseur Pour l'échafaud – 1957), de Louis Malle, numa propaganda no rádio. Propaganda enganosa: nenhum motel seria grande o bastante para tantos amantes. E o risco de processo era até maior, ainda mais no interior do planeta, onde as pessoas têm o infeliz prazer de dividir sexo e amor. Em Miles, Barney Wilen (sax tenor), René Urtreger (piano), Pierre Michelot (contrabaixo) e Kenny Clarke (bateria) não há um instante sem sexo e amor, juntos, entre todos e quem escuta, nem que seja por apenas três eternos segundos.


Mas há quem possa não ter escutado a trilha sonora inteira e visto apenas o filme e, acostumado à trilha sonora de videogame ou às reportagens da revista Playboy, acusar quem escreve de ladrão, bicha e maconheiro. “Vejo como as pessoas fazem leituras rasas das coisas. Vira uma manchete assim, do sexo anal, e ninguém reparou que não estava falando de mim, mas de uma maneira geral. Mas o que quiseram deixar como fato foi isso. A gente se revolta porque o mundo é um pouco injusto”, disse a cantora Sandy em entrevista à TV UOL divulgada no dia 31/08, sobre o fatídico dia que causou o gozo no país dos eunucos, quando a supracitada revista divulgou na web trechinhos (eles, de novo) do que viria a ser a sua incrível descoberta.


Ouvido de serpente - Tudo isso porque no filme, o romance proibido entre Julien Tavernier (Maurice Ronet) e Florence Carala (Jeanne Moreau, na foto acima com o ouvido no trompete de Miles!) é frustrado. A conversa apaixonada ao telefone logo no início da película e, no fim, as fotos reveladas de seu triste destino, são os únicos momentos visíveis dos vestígios de um amor. O resto é tensão, solidão, desespero e medo. Onde está amor e sexo?


A poetisa, cantora e atriz Beatriz Azevedo ensina em “Alegria”, seu último disco, gravado graças ao apoio da Petrobras em cultura, em 2008. Essa mulher de cabelos encaracolados atrai só pela sua beleza, mas que logo revela a extensão da alma em suas letras e em seu ritmo, uma mistura de Brasil e do mundo que, de tão saborosa, vira pop - para a tristeza de quem anda pensando em “salvar o pop”, Beatriz já fez isso há três anos. O disco tem a direção de Cristovão Bastos e músicos como o trombonista Bocato e participações especiais de Vinícius Cantuária e Tom Zé.


Na música e na letra de “Rede”, terceira faixa, além de deixar o ouvinte em êxtase, provoca em prosa: “Devoração de Partido Alto carioca com a mitologia das serpentes, simbolizando sabedoria e cura. As serpentes que protegem a meditação de Buda em sete espirais. O encantador de serpentes precisa dançar com sua flauta – a cobra é surda. Não é o som que encanta, e sim o movimento. Auto-devoração, oroboros.” Bem, de tudo isso, ouvi-la a princípio já desperta o seguinte: o ouvido da cobra é todo o corpo, porque o som da flauta (e da sua voz) também é movimento do ar. Quando se chega em “Circo”, a sexta faixa, a beleza é a da barriga do mundo, no centro de um outro planeta, parece até platônico.


Mas esse amor é real, está ao alcance do corpo e da alma, e tem sido emanado por muita gente. Basta ouvir, entrar na água, ir a um show. No dia 29/08, esteve em São Paulo a cantora Karen Souza, sobre a qual não se precisa saber muito, assim como Beatriz, por darem sabor ao que fazem e, igualmente, por dizerem: goste ou não, é isso o que eu faço.


O show durou para sempre naquele Teatro Bradesco, repleto de gente frente a uma mulher não apenas belíssima, mas com uma voz incrível e uma banda muito feliz, que se inspirava sempre naquilo que a estrela deveria estar esperando como resposta às suas frases, súplicas e mais íntimos segredos, mesmo cantando rock dos anos 80/90 em arranjos jazzísticos. Quando “Tainted Love” parecia o ápice, ela apresentou a banda de um jeito muito bom no meio da música “Wake Up and Make Love With Me”. A devoração poética foi total. E tão completa quanto ouvir Júlia Tygel em “Entremeados”, com Vana Bock, Adriana Holtz, Thais Nicodemo e João Taubkin em declarações de amor eterno à humanidade, abraçados de um lado pela "música popular brasileira" e, de outro, pela música dita "erudita" em uma noite sem lua cheia. No meio deles todos, nós!

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