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Thursday, December 10, 2009

Em defesa da experiência viva da música na escola


Imagine-se num cruzamento de madrugada, ouvindo ao fundo o pulsar distante dos motores de carros, abafados pelo silêncio da noite, entrecortados pelo som mais nítido do temporizador do farol da esquina. Depois, com esse ritmo, componha a sua própria música com o que precisa comunicar. É esse despertar da sensibilidade musical em crianças e adolescentes que tem sido o desafio da vida de Keith Swanwick, educador emérito do Instituto de Educação da Universidade de Londres, que esteve em São Paulo para participar do III Seminário da Associação Amigos do Projeto Guri, que de 19 a 21 de novembro reuniu cerca de 500 educadores para a discussão dos desafios dos projetos culturais. O Guri ensina gratuitamente música a 40 mil crianças e adolescentes do Estado.

Com base nas ideias de Piaget, ele desenvolveu a sua "Teoria Espiral do Desenvolvimento Musical" após estudar um grupo de alunos de escolas em Londres, dividindo a aprendizagem em quatro níveis relacionados tanto à idade do aluno quanto ao valor simbólico da música. Foi a partir dessa teoria que ele criou o método "Técnica, Execução, Composição, Literatura e Apreciação" (T.E.C.L.A), que foge ao sistema tradicional ao evitar a abordagem do aluno pelo ensino de um instrumento, pela leitura de partituras, que muitas vezes mais afastam do que aproximam as crianças da música. "A música está fechada em si mesma. O desafio do professor é fazer a aproximação. É evitar o uso dos rótulos", diz o educador, em entrevista à Agência Estado. "O trabalho do professor é evitar que a música se sedimente nas crianças como o concreto, o cimento, que se torne fixa."

Qual a importância da educação musical?
KEITH SWANWICK - Cada cultura tem a sua língua, e cada grupo, a sua música. Pode ser música religiosa ou de rituais. A música está em todo o lugar. A função da educação musical consiste em despertar a atenção das pessoas para essa música e trazê-la da origem do seu contexto para o primeiro plano. A música é muito importante não apenas pelo prazer em se ouvir, mas por permitir "insights" de sentimentos que não obteríamos de outra forma.

Como o professor pode estimular as crianças a desenvolverem a sua própria música? No Brasil, por exemplo, temos o samba. Seria essa a música que ajudaria no desenvolvimento, por ser parte direta da cultura do País?
SWANWICK - Há música em toda parte. Há música nas ruas, na mídia, na TV. Algumas são diretas, específicas, como o samba. Mas outras estão no "background", dentro de um contexto no qual não estamos prestando atenção. E o trabalho da educação musical é trazer a música desse pano de fundo, desse 'background', para o primeiro plano. E fazer isso é começar pelo tipo de música que o estudante já possui. Todos nós possuímos essa música. Localizá-la é muito importante para dar ao estudante a oportunidade de se expressar.

Como fazer isso?
SWANWICK - O que fazemos é a forma natural de se fazer música, evitando confinar o estudante à partitura. Isso pode causar um tipo de bloqueio e não é a melhor forma de abordagem. Eu apresento uma música e digo: 'trabalhem com esses sons em grupos. Não o reproduzam simplesmente, mas trabalhem com eles. Mude a velocidade, use a parte que quiser, joga o resto fora.' O aluno decide o que fazer. Ao dar a chance de construir música, eles podem trazer a música que já possuem em suas mentes. E ao aprender a compor estão aprendendo a se comunicar musicalmente. O professor é o facilitador desse processo.

Algumas escolas ainda obrigam os alunos a aprenderem um instrumento. Isso é correto?
SWANWICK - Na Inglaterra, nós temos uma nova política em que cada criança deve ter a oportunidade de tocar um instrumento. E isso é interpretado da forma mais rígida à mais flexível. A primeira é: toda criança toca flauta, o que é horrível. Em workshops que supervisionei uns trazem violino e trompete; outros, instrumentos simples. E eles misturaram os sons. E eu os estimulo a tocarem não com partitura, mas a partir de imagens. Por exemplo, uma imagem do fogo, seguido de uma floresta, e finalizando num céu com apenas uma nuvem. Cada uma dessas imagens tem uma estrutura e trabalhamos qual o som de cada uma e como fazer a transição entre elas.

Os professores no Brasil têm habilidade para desenvolver esse tipo de ensino?
SWANWICK - Claro que sim. Mas depende da bagagem do professor e do método. Porque o antigo é assim: você dá para a criança um instrumento, e a apresenta uma partitura, sem o estimular a crianças. É uma experiência terrível e a maioria odeia e desiste. Há várias formas de aproximar a criança da música e uma delas é não dar lições individuais. E eles aprendem uns com os outros. Se uma criança toca no tempo certo, outra também tocará. É mais fácil ela aprender com outra criança que com um adulto. Se ela vir seu amigo tocando, vai pensar 'porque eu não posso fazer isso se ele faz?' O grupo é parte importante do processo.

Em seu livro "Ensinando Música Musicalmente", o sr discute que, apesar de a música ter um contexto particular, referindo-se ao tempo e ao universo de quem a criou e por que classe ela é apreciada, há ainda um "contexto musical", no qual o indivíduo pode não conhecer a história de quem a compôs, ou não pertencer ao "grupo sonoro" que o aprecia, mas consegue percebê-la. Como fazer essa transcendência?
SWANWICK - Musica é uma atividade social. Certo! Música é criada em um contexto social. Certo! Mas música não é simplesmente determinada pela situação em que é feita. Se você pensa nesses termos, você não poderia apreciar música de outras culturas ou de outros séculos. A menos que o processo possua alguma autonomia, não completa, mas que se possa se libertar do contexto local.

Aí entra a educação? Porque, parece-me que a música se transformou em algo como o futebol, com uma função de catarse social...
SWANWICK - Você acha o mesmo numa discoteca. A anestesia do ruído e das luzes e das drogas e se esquece dos problemas.

É claro que, muitas vezes, é importante essa anestesia causa pela música...
SWANWICK - Sim, mas não dentro da escola! (risos) Não faria parte de um programa governamental.

Mas é que a música parece ter perdido um pouco sua capacidade de mudança, de reflexão.
SWANWICK - Hoje a música está fechada em si mesma. A dificuldade do professor é fazer a aproximação. E a minha não é dizer, 'vamos aprender a música de um famoso compositor alemão morto...' O que eu faço é um convite para tocarmos certos ritmos juntos. É evitar o uso dos rótulos culturais, mas focar no processo. O trabalho do professor é evitar que a música se sedimente nas crianças como o concreto, o cimento. Se torne fixa. Porque depois de uma certa idade, ficam fixas. O desafio é trabalhar para evitar isso.

Como você avalia o trabalho com música para crianças infratoras. Ajuda a reintegrá-las à sociedade?
SWANWICK - Não é 100%. Só podemos tentar. Muitos dos problemas dessas crianças é que elas não respeitam outras pessoas, porque também não se respeitam. E não se respeitam porque falharam por algum motivo. E buscam uma chance de obter sucesso. Música é uma possibilidade para algumas, não para todas, terem sucesso. Não no sentido de ficarem milionárias, mas se realizarem socialmente. A música é, simplesmente, uma das possibilidades.

(Roger Marzochi/AE – Foto de divulgação feita por Rodrigo Rubira, do Projeto Guri)